terça-feira, fevereiro 05, 2008

A Fuga do Areeiro

A ouvir: Across the Universe (OST)

Meses depois de ter saído daquele apartamento, estava de volta.

A ideia original era boa: partilhar casa com amigos para tentar reduzir as despesas e ao mesmo tempo divertirmo-nos, mas em pouco tempo comecei a perceber que não seria assim tão simples e, depois de um ano de estar ali, acabei por encontrar um sítio só para mim e fui-me embora. Foi nessa altura que tudo começou a correr mesmo mal e, por isso, quatro meses depois de ter saído, depois de algumas confusões com a senhoria, estava aqui para limpar a casa para poder finalmente entregar as chaves. Era esse o plano: limpar a casa, entregar as chaves e acabar com a história toda.

Saí do trabalho às cinco e apanhei o comboio para o Areeiro, à espera de ainda apanhar alguma luz do dia, já que a electricidade já tinha sido desligada no final do mês anterior. Esse era um dos problemas... esse, a água já estar cortada e a única coisa que havia para limpar a casa era uma esfregona que tinha sido deixada para trás, mas isso não me ia impedir de pelo menos tentar limpar os campos de pó que se estendiam pelo chão e os castelos de cotão nos cantos que entretanto tinham povoado os quartos vazios.

Enquanto estava no comboio comecei a sentir-me mal, o meu almoço (ou talvez a ansiedade da situação) estava a provocar uma pequena revolta no meu interior e e algo dentro de mim ansiava pela liberdade como a juventude na capital portuguesa em Março de 74. Comecei a pensar como poderia resolver a situação: talvez ir ao café em frente e aliviar-me ou talvez comprar uma garrafa de água e fazê-lo mesmo na casa-de-banho da casa que ia limpar. Nada que litro e meio de água mineral não limpasse... Dirigi-me à mercearia mesmo ao lado da casa e comprei uma garrafa de água mineral. Das baratas, não valia a pena estar a gastar muito dinheiro para a função que ia servir. Subi as escadas com alguma urgência, abri a porta, abandonei a pouca luz das escadas, atravessei a escuridão da casa e dirigi-me a casa-de-banho, ao fundo, onde me aguardava em silêncio o meu alívio. No final, num gesto meio-mecânico, meio-esperança, puxei o autoclismo. Quando a descarga se iniciou, levou com ela o pessimismo que estava a coleccionar desde o comboio: tinham deixado uma última descarga! Assim, ia aproveitar a água mineral para dar uma limpeza final, tentar eliminar qualquer coisa que me escapasse à primeira passagem.

Mais animado, virei-me para enfrentar a escuridão e o silêncio e da tarefa que me esperava. Tinha visto a casa no sábado anterior, quando tinha ido entregar as chaves à senhoria e esta as tinha recusado porque tinham deixado imensas coisas para trás e porque estava suja. Nesse mesmo dia, deitei 3 sacos do lixo grande fora, com coisas que tinham sido abandonadas e não me pareciam ter interesse em guardar, e tomei as devidas medidas para que o grande armário, que ocupava a entrada da casa, não estivesse lá quando a fosse limpar. Percorri todos os quartos, abrindo todas as janelas na esperança de fazer entrar alguma luz, mas em Dezembro às seis já não há luz. Ainda assim, as luzes de iluminação pública garantiam o mínimo de luz de forma a não andar a bater nas paredes, mas não o suficiente para saber qual a eficácia da minha limpeza. Hesitei. Talvez fosse melhor voltar no fim-de-semana, durante o dia. Não. A casa ia ficar limpa naquele dia e, quando saísse, ligava à senhoria para combinar a entrega das chaves e pôr um fim à situação.

Na cozinha tinha deixado uma esfregona e um balde. Fui buscá-los e delineei duas fases de trabalho: primeiro "varrer" o chão com a esfregona, depois lavá-lo com a água mineral. Peguei no leitor mp3 e comecei a ouvir o podcast do Museu de Arte Contemporânea de Chicago, com a ideia de afastar as ideias o mais possível de toda a situação, assumindo a limpeza, na impossibilidade de ver o que estava a fazer, um papel mecânico, milimétrico, comportamento quase-obsessivo, balançando de um pé para o outro, enquanto a esfregona arrastava consigo rolos de cotão e cabelo e pó. No final da primeira fase tinha um monte de lixo que acumulei na ombreira da porta da casa. Hora e meia. A segunda fase talvez fosse mais rápida. Abri a garrafa de água e despejei-a para o balde. Só nessa altura me perguntei se este poderia ter alguma coisa. A luz não mo permitia ver e não estava ansioso por pôr a mão dentro dele para descobrir. O plano estava estabelecido e com uma passagem rápida o dano não poderia ser muito grande. Recomecei. Essa fase não correu tão bem, a dúvida do que estava a fazer perseguia-me: estaria a espalhar algo sobre o chão em vez de o limpar? Persisti e pensei que, no dia de entregar as chaves, poderia sempre vir mais cedo e ver se era necessário tomar alguma medida adicional. O carácter minucioso-obsessivo da tarefa fez com que não percebesse a passagem do tempo. Mais uma hora e meia. Mais hora de meia de comportamento autista, a agenda de um museu no outro lado do mundo nos ouvidos, a dançar com a esfregona pela pista da casa despida.

Meses depois de ter saído daquele apartamento, após mais de três horas de movimentos na escuridão, finalmente abandonei-o. Doíam-me as costas, da posição que tive de manter durante horas, e atormentava-me a ideia de que o que acabava de fazer poderia não ter servido de nada, a escuridão impedindo-me de medir os resultados. Na mão levava o balde com o lixo e a esfregona, à luz, preta, como a sensação dentro de mim. Deixei-os no lixo, mas a sensação trouxe-a para casa e só me livrei dela há pouco tempo... mas aprendi.