quarta-feira, dezembro 31, 2008

“Pai, porque me abandonaste?” são, segundo Mateus e Marcos, as últimas palavras de Jesus na cruz. Nelas está expressa, na figura do Deus encarnado que assume, ao morrer, toda a sua humanidade, a condição humana: a Dúvida. Como se o assumir tão completo da humanidade O afastasse de Si próprio, O fizesse duvidar dos Seus próprios desígnios. Estas palavras parecem indicar o abismo racional que separa o Homem de Deus, a impossibilidade de conhecer ou compreender Deus.

Este é um tema facilmente compreendido pela ciência quando aplicado a outros contextos: pela biologia, no conceito da diferença da consciência animal e humana; pela sociologia, no conceito do grupo e da sua mentalidade colectiva em oposição ao indivíduo; na psicologia, na impossibilidade de compreender "o outro"; pela química, na impossibilidade de conhecer o estado de todas as partículas de determinado sistema; etc., mas que não costuma ser tomado em conta, a não ser por um punhado de filósofos e teólogos e no contexto de alguns textos religiosos.

Há não muito tempo, a religião e a ciência complementavam-se na missão de tentar conhecer Deus, só mais tarde, com os protestantes, se começaram a definir como antagonistas. Agora, depois do Iluminismo e das correntes ateias da filosofia, esta divisão parece inevitável, mas, se a dúvida é a condição humana, tanto a religião, como a ciência, como a filosofia são estratégias diferentes para lidar com ela, pela fé, pelo conhecimento, pela transcendência ou por qualquer outra via; estas estratégias, mais do que competirem entre si, complementam-se.

Não se pode cair em fundamentalismos ou radicalismos unilaterais ou negar alguma delas só porque ”não é possível provar” ou porque "vai contra os textos antigos": a Fé não exige prova, ajuda-nos a persistir no dia-a-dia, a encontrar significado na nossa vida; a Ciência tenta ser exacta, ajuda-nos a compreender o que nos rodeia e a desenvolver novas tecnologias para a nossa sobrevivência; e a Filosofia ajuda-nos a definir uma via, uma forma de estar e de agir. Sozinhas, em vez de nos ajudarem a lidar com a dúvida, só servem para nos cegar e dar-nos certezas que não existem, em conjunto, ajudam-nos a ser melhores.

quarta-feira, outubro 22, 2008

João 21:10

toda a noite afogado em rios de visco que escorrem das orelhas, empastando a almofada e colando-me o cabelo à cara
acordo assustado em pleno luar, para me levantar exausto horas depois, assombrado por simbologias estranhas e rapidamente obsoletas e esquecidas
as abluções matinais adiadas pela ansiedade do atraso habitual que me leva à conclusão de um atraso de anos, a oficialização de uma separação já há muito inevitável
um botão negro desponta por cima do estômago a abre no final da tarde, com a chuva, lançado no ar o seu pólen negro que se acumula debaixo das pálpebras
a fragilidade confessional abre-me a boca indiferente às dúvidas que se levantam
a pele encolhe-se com a humidade, imitando papiro, seco e áspero, revelando à superfície hieróglifos, indicações de rituais atrozes com o sangue a escorrer por degraus entretanto cobertos por vegetação
na rua, depois de impotente perdido por mapas não-familiares, um comando "espera!" sai de um capuz púrpura para um telemóvel que se esconde no fundo do saco a gritar por atenção. "foda-se!" o telemóvel cala-se em contacto com o ar e jesus sorri-me em tons laranjas de um postal agarrado à pressa para chegar a ele
no útero narrativo, hoje metamorfoseado em falsa sala de concertos, só um candy says na voz estrangulada de Antony me consegue deslocar do sonambulismo dentro do qual todo o dia me escondi
as ruas espelhadas de lisboa reflectem a minha passagem por velhos territórios na demanda de alívio negado por problemas técnicos
a torrente das palavras despenha-se no metro no regresso a casa onde as irmãs reinstauram a crueldade de uma lei inconsciente e o visco encrustrado de pólen negro me fecha os olhos

segunda-feira, outubro 06, 2008

When did you last see your father?

Fui ver hoje, um pouco contra o meu parco bom-senso, o filme com esse nome, baseado num best-seller que não li, onde o autor conta a sua relação com o seu pai, já no final da vida deste. O filme em si, ainda que impecavelmente filmado e representado, peca por alguma falta de originalidade, mas afectou-me...


O meu pai morreu há vinte e cinco anos, a meio de um processo de separação com a minha mãe, e as minhas poucas recordações dele são fragmentos já muito apagados pelo tempo e alterados pela narrativa interna que se foi desenvolvendo com as suas fotografias, as histórias da minha mãe e as minhas necessidades emocionais de apaziguamento. Mesmo em plena terapia, nunca procurei explorá-las a fundo com medo que se desfizessem, como uma qualquer relíquia que durante anos esteve guardada no fundo de um baú apenas para se tornar em pó ao contacto com o ar.


Estas memórias são tão singulares que nem verbais são: as suas mãos a tremer enquanto me agarrava, a sua barba a arranhar quando lhe desejava boa noite, uma sensação de cansaço que parecia sempre estar presente... nem uma história completa fazem. Quando é que vi o meu pai pela última vez? Não sei. Curioso nem ter uma figura completa para esta sensação "pai". Demorei mais de vinte anos a chorar a morte do meu pai, depois de anos de terapia... hoje foi mais fácil fazê-lo.

quarta-feira, março 12, 2008

Subway

Listening to: Cousteau - Black Heart of Mine

She left him on the subway train to get to work. He realized, watching her back, that he was going to lose her. These past months growing irksome with conflict and, worse, silence. He wanted to reach her, to make her love him, to remind her of her offer so long ago, in a day long forgotten, when he, still unsure, refused her. Can you love too late?

The subway was filled of a thousand such stories, a thousand eyes hiding tears of frustration and sadness, each for one's own misery, disconnected in all but the fact that they were all on the same subway train. If only love were as simple as the subway: when one finds that one has missed one's station, all one has to do is get on the next subway train going in the other direction. How can love be so illusory, so fickle? Just a few months after her offer, when he finally understood that, no matter what doubts he was able to conjure, and he could do it just by breathing, he wanted to be with her, she told him that she no longer saw him like that, that all she wanted was a friend, and now even that seemed to be fading.

It had been like this throughout his life, missing stations and collecting friends, and he just didn´t know how he could leave this damn subway train, how he could follow her and let her know that if she wanted they could find a station just for the two of them, where no trains would pass...

He resigned.

Between stations, he kept looking to the station map affixed on top of the train doors, anxiously hoping for a sign.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

A Fuga do Areeiro

A ouvir: Across the Universe (OST)

Meses depois de ter saído daquele apartamento, estava de volta.

A ideia original era boa: partilhar casa com amigos para tentar reduzir as despesas e ao mesmo tempo divertirmo-nos, mas em pouco tempo comecei a perceber que não seria assim tão simples e, depois de um ano de estar ali, acabei por encontrar um sítio só para mim e fui-me embora. Foi nessa altura que tudo começou a correr mesmo mal e, por isso, quatro meses depois de ter saído, depois de algumas confusões com a senhoria, estava aqui para limpar a casa para poder finalmente entregar as chaves. Era esse o plano: limpar a casa, entregar as chaves e acabar com a história toda.

Saí do trabalho às cinco e apanhei o comboio para o Areeiro, à espera de ainda apanhar alguma luz do dia, já que a electricidade já tinha sido desligada no final do mês anterior. Esse era um dos problemas... esse, a água já estar cortada e a única coisa que havia para limpar a casa era uma esfregona que tinha sido deixada para trás, mas isso não me ia impedir de pelo menos tentar limpar os campos de pó que se estendiam pelo chão e os castelos de cotão nos cantos que entretanto tinham povoado os quartos vazios.

Enquanto estava no comboio comecei a sentir-me mal, o meu almoço (ou talvez a ansiedade da situação) estava a provocar uma pequena revolta no meu interior e e algo dentro de mim ansiava pela liberdade como a juventude na capital portuguesa em Março de 74. Comecei a pensar como poderia resolver a situação: talvez ir ao café em frente e aliviar-me ou talvez comprar uma garrafa de água e fazê-lo mesmo na casa-de-banho da casa que ia limpar. Nada que litro e meio de água mineral não limpasse... Dirigi-me à mercearia mesmo ao lado da casa e comprei uma garrafa de água mineral. Das baratas, não valia a pena estar a gastar muito dinheiro para a função que ia servir. Subi as escadas com alguma urgência, abri a porta, abandonei a pouca luz das escadas, atravessei a escuridão da casa e dirigi-me a casa-de-banho, ao fundo, onde me aguardava em silêncio o meu alívio. No final, num gesto meio-mecânico, meio-esperança, puxei o autoclismo. Quando a descarga se iniciou, levou com ela o pessimismo que estava a coleccionar desde o comboio: tinham deixado uma última descarga! Assim, ia aproveitar a água mineral para dar uma limpeza final, tentar eliminar qualquer coisa que me escapasse à primeira passagem.

Mais animado, virei-me para enfrentar a escuridão e o silêncio e da tarefa que me esperava. Tinha visto a casa no sábado anterior, quando tinha ido entregar as chaves à senhoria e esta as tinha recusado porque tinham deixado imensas coisas para trás e porque estava suja. Nesse mesmo dia, deitei 3 sacos do lixo grande fora, com coisas que tinham sido abandonadas e não me pareciam ter interesse em guardar, e tomei as devidas medidas para que o grande armário, que ocupava a entrada da casa, não estivesse lá quando a fosse limpar. Percorri todos os quartos, abrindo todas as janelas na esperança de fazer entrar alguma luz, mas em Dezembro às seis já não há luz. Ainda assim, as luzes de iluminação pública garantiam o mínimo de luz de forma a não andar a bater nas paredes, mas não o suficiente para saber qual a eficácia da minha limpeza. Hesitei. Talvez fosse melhor voltar no fim-de-semana, durante o dia. Não. A casa ia ficar limpa naquele dia e, quando saísse, ligava à senhoria para combinar a entrega das chaves e pôr um fim à situação.

Na cozinha tinha deixado uma esfregona e um balde. Fui buscá-los e delineei duas fases de trabalho: primeiro "varrer" o chão com a esfregona, depois lavá-lo com a água mineral. Peguei no leitor mp3 e comecei a ouvir o podcast do Museu de Arte Contemporânea de Chicago, com a ideia de afastar as ideias o mais possível de toda a situação, assumindo a limpeza, na impossibilidade de ver o que estava a fazer, um papel mecânico, milimétrico, comportamento quase-obsessivo, balançando de um pé para o outro, enquanto a esfregona arrastava consigo rolos de cotão e cabelo e pó. No final da primeira fase tinha um monte de lixo que acumulei na ombreira da porta da casa. Hora e meia. A segunda fase talvez fosse mais rápida. Abri a garrafa de água e despejei-a para o balde. Só nessa altura me perguntei se este poderia ter alguma coisa. A luz não mo permitia ver e não estava ansioso por pôr a mão dentro dele para descobrir. O plano estava estabelecido e com uma passagem rápida o dano não poderia ser muito grande. Recomecei. Essa fase não correu tão bem, a dúvida do que estava a fazer perseguia-me: estaria a espalhar algo sobre o chão em vez de o limpar? Persisti e pensei que, no dia de entregar as chaves, poderia sempre vir mais cedo e ver se era necessário tomar alguma medida adicional. O carácter minucioso-obsessivo da tarefa fez com que não percebesse a passagem do tempo. Mais uma hora e meia. Mais hora de meia de comportamento autista, a agenda de um museu no outro lado do mundo nos ouvidos, a dançar com a esfregona pela pista da casa despida.

Meses depois de ter saído daquele apartamento, após mais de três horas de movimentos na escuridão, finalmente abandonei-o. Doíam-me as costas, da posição que tive de manter durante horas, e atormentava-me a ideia de que o que acabava de fazer poderia não ter servido de nada, a escuridão impedindo-me de medir os resultados. Na mão levava o balde com o lixo e a esfregona, à luz, preta, como a sensação dentro de mim. Deixei-os no lixo, mas a sensação trouxe-a para casa e só me livrei dela há pouco tempo... mas aprendi.