quarta-feira, outubro 22, 2008

João 21:10

toda a noite afogado em rios de visco que escorrem das orelhas, empastando a almofada e colando-me o cabelo à cara
acordo assustado em pleno luar, para me levantar exausto horas depois, assombrado por simbologias estranhas e rapidamente obsoletas e esquecidas
as abluções matinais adiadas pela ansiedade do atraso habitual que me leva à conclusão de um atraso de anos, a oficialização de uma separação já há muito inevitável
um botão negro desponta por cima do estômago a abre no final da tarde, com a chuva, lançado no ar o seu pólen negro que se acumula debaixo das pálpebras
a fragilidade confessional abre-me a boca indiferente às dúvidas que se levantam
a pele encolhe-se com a humidade, imitando papiro, seco e áspero, revelando à superfície hieróglifos, indicações de rituais atrozes com o sangue a escorrer por degraus entretanto cobertos por vegetação
na rua, depois de impotente perdido por mapas não-familiares, um comando "espera!" sai de um capuz púrpura para um telemóvel que se esconde no fundo do saco a gritar por atenção. "foda-se!" o telemóvel cala-se em contacto com o ar e jesus sorri-me em tons laranjas de um postal agarrado à pressa para chegar a ele
no útero narrativo, hoje metamorfoseado em falsa sala de concertos, só um candy says na voz estrangulada de Antony me consegue deslocar do sonambulismo dentro do qual todo o dia me escondi
as ruas espelhadas de lisboa reflectem a minha passagem por velhos territórios na demanda de alívio negado por problemas técnicos
a torrente das palavras despenha-se no metro no regresso a casa onde as irmãs reinstauram a crueldade de uma lei inconsciente e o visco encrustrado de pólen negro me fecha os olhos

Sem comentários: